Boas-vindas!

Bem-vindos ao blog PROJETO POETAS LATINOS!


Criado por nossa firma, Cyclicus Editorial, o PROJETO tem como objetivo inicial publicar, em volumes uniformes, as obras completas que nos chegaram dos poetas do período de maior efervescência da literatura latina clássica, isto é, os séculos I a.C. e I d.C., de Lucrécio a Juvenal. Dentro desse objetivo, lançamos o blog homônimo para podermos divulgar o PROJETO e manter o leitor a par das novidades.


Se é lícito defender o ineditismo e a relevância de nosso empreendimento, observaremos apenas que jamais algo parecido foi tentado na história editorial brasileira. Já se fizeram anteriormente, como todos sabemos, várias traduções de certos autores ou de obras específicas, em prosa ou em versos, seguindo os mais diversos critérios. No entanto, jamais testemunhamos uma iniciativa que colocasse todos esses nomes clássicos de uma das matrizes vitais de nossa cultura, e todo o seu espólio restante, ao alcance do leitor brasileiro, reunindo-os em uma coleção uniforme, com texto bilíngue, e empregando critérios definidos de tradução capazes de manter a fluência, a dinâmica e a expressividade métrico-rítmica dos versos originais.


Desde já, agradecemos a todos pelo interesse e apoio.


Acácio Luiz Santos.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Lucrécio e os deuses (2ª parte)


Na primeira parte de nossa postagem, vimos como Lucrécio concebe os deuses levando uma vida apartada da nossa, sem privações, desinteressados de todos os nossos assuntos, e não exercendo nenhum papel na criação nem no funcionamento do mundo. Mesmo assim, nada disso impede que os homens lhes ofereçam grandes tributos e sacrifícios.

É inevitável, diante desse quadro, fazer uma indagação: se os deuses nos ignoram por completo e jamais nos dão, digamos, a honra de sua visita, por que o homem, mesmo assim, cultua-os, não raro ofertando-lhes cruentos sacrifícios? A resposta, para Lucrécio, é bem simples e se resume a duas causas possíveis: medo de morrer e ambição de poder.

O medo de morrer não raro se relaciona ao temor de sofrer castigos eternos por males cometidos em vida, e este é um tópico frequente em várias religiões, que instigam o medo de agir mal, sob a argumentação de que, mesmo não sendo castigado em vida, o homem não escapará de ajustar suas contas após ter morrido. Assim faziam os vates (os sacerdotes) em Roma, que Lucrécio denuncia a seu amigo e discípulo Mêmio:

Quanto a ti, em momento iminente, dos vates vencido 102
pelos seus ditos terríveis, de nós desertar já desejas.
Mas certamente, que, em ti, insinuar muitos sonhos já ousam,
que, sem demora, da vida as regras mudar ora possam 105
e assim plenamente, aos teus arbítrios, turvar de temor! E
o fazem em proveito seu: pois, se existir de labores um termo
fixo os homens notassem, prevaleceriam de razão
à religião e, às ameaças dos vates, assim opor-se-iam.
Ora, nenhuma razão, faculdade nenhuma, resiste 110
quando ainda se temem tormentos eternos na morte. (I,102-111)

Lucrécio, portanto, considera o emprego da razão um excelente antídoto para o medo de morrer. Mas o homem frequentemente não usa, ou usa mal a razão: erra, corrompe-se, comete crimes, e à primeira ameaça de morte iminente, busca desesperado arrepender-se de suas faltas e honrar os deuses longamente ignorados:

Mesmo os que são exilados da pátria, partidos ao largo e
longe do alcance dos homens, de sórdido crime manchados,
que, afetados por todas as tribulações, sobrevivem, 50
mesmo em reveses, aonde aportam ofertam aos mortos:
reses mui negras abatem e aos manes divinos enviam
of’rendas sangrentas e cruéis. E, por coisas muito acerbas,
amargamente os ânimos voltam à religião. (III,48-54)

O medo de morrer se liga, portanto, à ambição de poder. Mais uma vez, o homem emprega mal sua razão: desdenhando refletir sobre quais são os verdadeiros bens a serem desejados nesta vida, o homem se dedica à ganância e ao acúmulo de riquezas, e acaba envolto em uma busca ingrata por rapinagens e corrupção, poder e honrarias, ao usufruto de coisas belas e caras, cujo preço cruel é uma vida de insegurança e suspeita:

E finalmente, a avareza e a cegueira por vãs honrarias,
que aos míseros homens coagem a transpor os limites 60
do que é justo e, entre cúmplices, sócios de crimes e súcias,
noites e dias lutar sem cessar com esforço excessivo
para alcançar os supremos poderes: tais tribulações,
em não mínima parte, se nutrem do medo da morte. (I,59-64)

Por isso, queixa-se Lucrécio, os homens resistem tanto à ideia de que os deuses não se importam com eles: à consciência culpada é necessário que existam divindades que, devidamente mimoseadas com oferendas e sacrifícios, possam perdoar os erros e ajudar a expiar os crimes. Mesmo não tendo cometido atrocidades, os homens, por sua vez, espantam-se com as catástrofes naturais e tempestades e, ao invés de examiná-las com cuidadosa reflexão, temem que elas sejam ocasionadas por deuses irritados e, uma vez mais, buscam acalmá-los com tributos e derramamento de sangue:

Pois os que bem aprenderam que os deuses um leve evo levam,
mesmo assim se admiram da regra por que cada coisa
pode gerar-se, especialmente aquelas que, sobre 60
as suas cabeças, discernem advir pelas plagas celestes;
por conseguinte, ao uso antigo de religião retornam,
e implacáveis senhores adotam, aos quais atribuem
― míseros! ― tudo poder, ignorantes daquilo que pode
e do que não pode existir, e da regra por que a potestade 65
de cada coisa é enfim definida e um limite a ela imposto:
são da mais cega razão, portanto, levados errantes. (VI,58-67)

O emprego correto da razão, conforme Lucrécio, acarreta portanto um triplo benefício: liberta os homens do medo de morrer e das ambições de poder, fazendo-os voltar-se para a busca dos verdadeiros bens de modo equilibrado; estimula-os a buscar as verdadeiras causas naturais para todos os fenômenos do mundo; e finalmente, afasta os homens da prática de sacrifícios sangrentos e rituais inúteis, sempre criticados abertamente pelo poeta:

Nem é sequer piedade ser visto volver-se velado
a lápide alguma, tão-pouco a todo altar estear-se,
nem se prostrar estendido no solo e bater tolas palmas 1200
ante os templos dos deuses, nem espargir os altares
de muito sangue quadrúpede, nem interligar voto a voto,
mas contemplar tudo com uma mente de todo tranquila. (V,1198-1203)

Mas afinal, qual é o lugar dos deuses? Sempre confiante no correto emprego da razão e reflexão para espantar as trevas do ânimo, Lucrécio prometeu ainda, no Livro 5, uma longa exposição sobre os deuses e suas sedes:

Devem assim suas sedes das nossas dissímiles serem
mui certamente, e tênues conforme seu próprio corpo,
o que mais adiante eu demonstrarei com discurso copioso. 155 (V,153-155)

Infelizmente, todavia, ele não pôde cumprir a promessa; se ele, diante da trabalhosa tarefa de especulação sobre os corpos celestes, acabou por esquecê-la, ou se, contando realizá-la no Livro 6, o último, faleceu antes que pudesse escrevê-la, jamais saberemos. De qualquer forma, Lucrécio deixou numerosas indicações esparsas nos vários livros de seu poema, que vão permitir-nos tratar, na terceira e última parte de nossa postagem, da natureza dos deuses. Portanto, até a próxima e, mais uma vez, muito obrigado a todos por sua visita!

Acácio Luiz Santos.


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