Na
primeira parte de nossa postagem, vimos como Lucrécio concebe os deuses levando
uma vida apartada da nossa, sem privações, desinteressados de todos os nossos
assuntos, e não exercendo nenhum papel na criação nem no funcionamento do
mundo. Mesmo assim, nada disso impede que os homens lhes ofereçam grandes
tributos e sacrifícios.
É
inevitável, diante desse quadro, fazer uma indagação: se os deuses nos ignoram por
completo e jamais nos dão, digamos, a honra de sua visita, por que o homem,
mesmo assim, cultua-os, não raro ofertando-lhes cruentos sacrifícios? A
resposta, para Lucrécio, é bem simples e se resume a duas causas possíveis:
medo de morrer e ambição de poder.
O
medo de morrer não raro se relaciona ao temor de sofrer castigos eternos por
males cometidos em vida, e este é um tópico frequente em várias religiões, que
instigam o medo de agir mal, sob a argumentação de que, mesmo não sendo
castigado em vida, o homem não escapará de ajustar suas contas após ter
morrido. Assim faziam os vates (os sacerdotes) em Roma, que Lucrécio denuncia a
seu amigo e discípulo Mêmio:
Quanto
a ti, em momento iminente, dos vates vencido 102
pelos
seus ditos terríveis, de nós desertar já desejas.
Mas
certamente, que, em ti, insinuar muitos sonhos já ousam,
que,
sem demora, da vida as regras mudar ora possam 105
e
assim plenamente, aos teus arbítrios, turvar de temor! E
o
fazem em proveito seu: pois, se existir de labores um termo
fixo
os homens notassem, prevaleceriam de razão
à
religião e, às ameaças dos vates, assim opor-se-iam.
Ora,
nenhuma razão, faculdade nenhuma, resiste 110
quando
ainda se temem tormentos eternos na morte. (I,102-111)
Lucrécio,
portanto, considera o emprego da razão um excelente antídoto para o medo de
morrer. Mas o homem frequentemente não usa, ou usa mal a razão: erra,
corrompe-se, comete crimes, e à primeira ameaça de morte iminente, busca
desesperado arrepender-se de suas faltas e honrar os deuses longamente
ignorados:
Mesmo
os que são exilados da pátria, partidos ao largo e
longe
do alcance dos homens, de sórdido crime manchados,
que,
afetados por todas as tribulações, sobrevivem, 50
mesmo
em reveses, aonde aportam ofertam aos mortos:
reses
mui negras abatem e aos manes divinos enviam
of’rendas
sangrentas e cruéis. E, por coisas muito acerbas,
amargamente
os ânimos voltam à religião. (III,48-54)
O
medo de morrer se liga, portanto, à ambição de poder. Mais uma vez, o homem
emprega mal sua razão: desdenhando refletir sobre quais são os verdadeiros bens
a serem desejados nesta vida, o homem se dedica à ganância e ao acúmulo de
riquezas, e acaba envolto em uma busca ingrata por rapinagens e corrupção,
poder e honrarias, ao usufruto de coisas belas e caras, cujo preço cruel é uma
vida de insegurança e suspeita:
E
finalmente, a avareza e a cegueira por vãs honrarias,
que
aos míseros homens coagem a transpor os limites 60
do
que é justo e, entre cúmplices, sócios de crimes e súcias,
noites
e dias lutar sem cessar com esforço excessivo
para
alcançar os supremos poderes: tais tribulações,
em
não mínima parte, se nutrem do medo da morte. (I,59-64)
Por
isso, queixa-se Lucrécio, os homens resistem tanto à ideia de que os deuses não
se importam com eles: à consciência culpada é necessário que existam divindades
que, devidamente mimoseadas com oferendas e sacrifícios, possam perdoar os
erros e ajudar a expiar os crimes. Mesmo não tendo cometido atrocidades, os
homens, por sua vez, espantam-se com as catástrofes naturais e tempestades e,
ao invés de examiná-las com cuidadosa reflexão, temem que elas sejam
ocasionadas por deuses irritados e, uma vez mais, buscam acalmá-los com
tributos e derramamento de sangue:
Pois
os que bem aprenderam que os deuses um leve evo levam,
mesmo
assim se admiram da regra por que cada coisa
pode
gerar-se, especialmente aquelas que, sobre 60
as
suas cabeças, discernem advir pelas plagas celestes;
por
conseguinte, ao uso antigo de religião retornam,
e
implacáveis senhores adotam, aos quais atribuem
―
míseros! ― tudo poder, ignorantes daquilo que pode
e
do que não pode existir, e da regra por que a potestade 65
de
cada coisa é enfim definida e um limite a ela imposto:
são
da mais cega razão, portanto, levados errantes. (VI,58-67)
O
emprego correto da razão, conforme Lucrécio, acarreta portanto um triplo
benefício: liberta os homens do medo de morrer e das ambições de poder,
fazendo-os voltar-se para a busca dos verdadeiros bens de modo equilibrado;
estimula-os a buscar as verdadeiras causas naturais para todos os fenômenos do
mundo; e finalmente, afasta os homens da prática de sacrifícios sangrentos e
rituais inúteis, sempre criticados abertamente pelo poeta:
Nem
é sequer piedade ser visto volver-se velado
a
lápide alguma, tão-pouco a todo altar estear-se,
nem
se prostrar estendido no solo e bater tolas palmas 1200
ante
os templos dos deuses, nem espargir os altares
de
muito sangue quadrúpede, nem interligar voto a voto,
mas
contemplar tudo com uma mente de todo tranquila. (V,1198-1203)
Mas
afinal, qual é o lugar dos deuses? Sempre confiante no correto emprego da razão
e reflexão para espantar as trevas do ânimo, Lucrécio prometeu ainda, no Livro
5, uma longa exposição sobre os deuses e suas sedes:
Devem
assim suas sedes das nossas dissímiles serem
mui
certamente, e tênues conforme seu próprio corpo,
o
que mais adiante eu demonstrarei com discurso copioso. 155 (V,153-155)
Infelizmente,
todavia, ele não pôde cumprir a promessa; se ele, diante da trabalhosa tarefa
de especulação sobre os corpos celestes, acabou por esquecê-la, ou se, contando
realizá-la no Livro 6, o último, faleceu antes que pudesse escrevê-la, jamais
saberemos. De qualquer forma, Lucrécio deixou numerosas indicações esparsas nos
vários livros de seu poema, que vão permitir-nos tratar, na terceira e última
parte de nossa postagem, da natureza dos deuses. Portanto, até a próxima e,
mais uma vez, muito obrigado a todos por sua visita!
Acácio Luiz Santos.
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