Boas-vindas!

Bem-vindos ao blog PROJETO POETAS LATINOS!


Criado por nossa firma, Cyclicus Editorial, o PROJETO tem como objetivo inicial publicar, em volumes uniformes, as obras completas que nos chegaram dos poetas do período de maior efervescência da literatura latina clássica, isto é, os séculos I a.C. e I d.C., de Lucrécio a Juvenal. Dentro desse objetivo, lançamos o blog homônimo para podermos divulgar o PROJETO e manter o leitor a par das novidades.


Se é lícito defender o ineditismo e a relevância de nosso empreendimento, observaremos apenas que jamais algo parecido foi tentado na história editorial brasileira. Já se fizeram anteriormente, como todos sabemos, várias traduções de certos autores ou de obras específicas, em prosa ou em versos, seguindo os mais diversos critérios. No entanto, jamais testemunhamos uma iniciativa que colocasse todos esses nomes clássicos de uma das matrizes vitais de nossa cultura, e todo o seu espólio restante, ao alcance do leitor brasileiro, reunindo-os em uma coleção uniforme, com texto bilíngue, e empregando critérios definidos de tradução capazes de manter a fluência, a dinâmica e a expressividade métrico-rítmica dos versos originais.


Desde já, agradecemos a todos pelo interesse e apoio.


Acácio Luiz Santos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Lucrécio e os deuses (3ª parte)


Nas partes anteriores de nossa postagem, vimos que os deuses, na obra de Lucrécio, aparecem como seres sem necessidades nem aborrecimentos, vivendo uma existência à parte de nosso mundo, completamente indiferentes a nós. Vimos ainda que, mesmo assim, por causa do medo de morrer e da ambição de poder, os homens lhes oferecem sacrifícios, não raro sangrentos. Concluindo nossa postagem, procuraremos agora entender qual é, exatamente, o lugar dos deuses, e em que pode consistir, afinal, a sua natureza para nós. Desde já, desejamos a todos que nos acompanharam até aqui uma boa leitura, e muito obrigado por sua visita!

Inicialmente, quanto ao lugar dos deuses, há uma interessante passagem no início do Livro 3, quando, após Lucrécio louvar, uma vez mais, os esforços de seu mestre, Epicuro, para demonstrar que os deuses não têm participação na criação nem no funcionamento de nosso mundo, ele descreve em breves notações o lugar dos deuses:

Vai-se o véu, divindade dos divos ― e as mansas moradas,
que nem os ventos agitam, nem as nuvens com chuvas copiosas
regam, nem a cândida neve cadente adensada de aguda 20
geada macula, e que um éter sem nuvens continuamente
cobre e compraz largamente de lume difuso munido ―;
tudo a natura oferece a eles também, e nem de longe
algo lhes turva do ânimo a paz, nunca, em hora alguma:
pelo contrário, jamais lhes advêm os Aquerúsios templos. 25 (III,18-25)

Os deuses vivem imperturbáveis, em moradas tranquilas, sem percalços, conforme Lucrécio anunciara desde o Livro 1. A novidade agora é que a natureza oferece tudo a eles, aparentemente sem lhes tirar nada em troca. Como seria isto possível? E como poderia a razão reflexiva depreendê-lo, uma vez que ela depende dos dados oferecidos pelos sentidos? Embora os deuses tenham uma natureza diversa da nossa, está claro que algo relacionado a eles nos afeta, fazendo com que a razão tenha condições de refletir sobre o seu modo particular de existência. Vejamos, portanto, a seguir como os deuses se afirmam como presença no mundo dos mortais.

A presença dos deuses na cultura romana é fato patente, e Lucrécio reconhece três significados deles para nós. Inicialmente, eles têm um significado simbólico, pelo qual os mitos relacionados aos deuses santificam os valores adotados e prezados pela sociedade. O Livro 2 contém uma longa passagem que descreve um cortejo em celebração da Mãe Terra, de curiosa modernidade, pois Lucrécio interpreta todos os seus elementos em função do significado que eles trazem para nós. A descrição do cortejo conclui explicando a presença das legiões armadas nele:

Por causa disso acompanham armadas facções a grã mãe, 640
que significam os preceitos da diva: que com armas de guerra
e com virtude desejem guardar sua pátria terra
e se preparem a servir de abrigo e decoro aos pais.
Bem que essas coisas se ofereçam habilmente expostas,
’stão todavia bem longe expulsas da vera razão. 645 (II,640-645)

As armas no cortejo, portanto, sacralizam a ideia de defender a pátria terra, prescrita pela deusa. Logo adiante, Lucrécio expõe o significado metonímico dos deuses, pois com frequência empregamos os seus nomes para designar as coisas a que os seus mitos estão ligados:

Ora, se alguém institui chamar ao mar por Netuno 655
e às messes por Ceres, e usar o de Baco bel nome prefere
a proferir o apropriadamente mais justo de vinho,
então concedamos que ele nomeie o orbe das terras
Mãe dos deuses, dês que ele em verdade, no entanto,
evite manchar o seu ânimo da religião indigna. 680 (II,655-659;680)

Dos dois trechos acima, vemos que Lucrécio, apesar das concessões, não deixa de enfatizar que o culto aos deuses (lembremos, indiferentes a nós) é desprovido de razão reflexiva, e que inaceitável, por sua vez, é recair nas máculas da “religião indigna” (ou seja, os sacrifícios e atos ímpios cometidos em nome da religião). Mas os deuses trazem um terceiro significado ainda, de caráter alegórico, representando abstrações vitais para o homem, e este caráter é inclusive empregado por Lucrécio logo no início do poema, em seu famoso louvor a Vênus, e também aparece no início do Livro 6, quando ele pede inspiração à Musa:

E enquanto ao cândido código do derradeiro desígnio
corro, revela-me o rumo correto, ó cálida musa,
tu, ó Calíope, quietude dos homens, volúpia dos deuses,
que, aconselhado, eu conquiste a coroa com loa ilustre. 95 (VI,92-95)

Nesses três significados, particularmente o último, fica claro o caráter paradigmático, exemplar, que os deuses têm para os homens, sugerindo uma excelência de virtudes e correta e moderada eleição dos verdadeiros prazeres, para que a vida possa ser plenamente usufruída. Mesmo assim, de que modo essa, digamos, notícia dos deuses nos chega? De onde ela vem? E como os homens conseguem captá-la? Numa passagem do Livro 5, Lucrécio nos dá elementos para responder a essas perguntas:

Não se pode, tão-pouco, crer que estejam as moradas
sacras dos deuses situadas em parte qualquer desse mundo.
A natureza dos deuses decerto é tênue e afastada
em muito dos nossos sentidos, e a custo a mente a apreende;
e, assim como escapa ao contato das mãos e ao toque humano, 150
não tange coisa alguma que possa por nós ser tangida;
pois o que não é tangível não pode tanger igualmente. (V,146-152)

Lucrécio descarta taxativamente que o lugar dos deuses esteja em nosso mundo visível; descarta também que exista qualquer contato entre eles e os homens (na verdade, ele sugere mesmo que, nem que os deuses quisessem, isso não seria possível). Não obstante, nossa mente capta, embora com esforço, sua natureza. E isso se faz da mesma maneira com que a mente capta os simulacros (imagens tenuíssimas) das coisas desse mundo:

Já em vigília os mortais divagavam e viam passarem
imagens egrégias dos deuses pelo ânimo absorto, e durante 1170
o sono ainda mais se admiravam ao vê-los de corpos maiores;
atribuíam-lhes sentidos, pois lhes parecia deveras
ver a mover-se os seus membros; e as vozes vibravam soberbas,
em consonância com o aspecto preclaro e a força imensa.
E vida eterna atribuíam a eles, pois sempre suas faces 1175
se renovavam; e sua forma, além disso, mantinha-se a mesma:
isso porque não julgavam que seres dotados de força
tão poderosa pudessem de outra qualquer ser vencidos.
E os imputavam, ainda, excelsos de felicidade,
pois o temor de morrer não os atormentava jamais. 1180
E além disso os viam, em sonhos, façanhas notáveis
empreenderem ― e inúmeras! ―, sem se cansarem do esforço.
Tanto no entanto, aos eventos celestes e anuais estações
sempre, conforme uma ordem constante, notavam voltar, e
não podiam entender por que causa ocorriam tais coisas: 1185
por conseguinte, encontraram um refúgio, atribuindo aos deuses
todas as coisas e, ainda, supondo-as submissas a eles.
E colocaram os templos e sedes divinas no céu,
pois, pelo céu, a noite e a lua eram vistas vagando,
(..) (V,1169-1189)

Notemos que as imagens dos deuses nos chegam, mas o ânimo dos homens tira sozinho suas conclusões, fantasiando seres fortes, imortais, belos e infatigáveis, senhores das coisas e habitantes do céu. Lucrécio, no entanto, várias vezes nos alertara de que o ânimo é passível de tirar conclusões erradas sobre os dados sensoriais que o afetam, e que principalmente em sonhos, o ânimo, exausto e em repouso, junto com a alma, não é capaz de discernir entre realidade e imaginação. Destarte, a natureza dos deuses para nós, nesse mundo, é a mesma dos simulacros: imagens desprendidas das coisas, que pairam invisíveis aos olhos e acabam sendo finalmente captadas pela mente. A aproximação dos deuses aos simulacros é mais evidente ainda nessa passagem do Livro 6:

Se não retiras do ânimo e enjeitas bem longe a ideia
de atribuir aos deuses atos indignos e turvos,
seus santos numes divinos, por ti desdenhados, amiúde 70
obstruir-te-ão ― não que a força suprema dos deuses consiga
ser violada ou, vibrando de ira, infligir pena amarga ―;
mas enquanto eles, em plácida paz, permanecem quietos,
iras em imensas torrentes irás conceber revolverem
e não chegarás com um plácido peito aos templos dos deuses, 75
nem aos simulacros que são desprendidos de seu santo corpo
― anúncios de forma divina, os quais nas mentes dos homens
se insinuam ― irás recebê-los de ânimo calmo.
E a isso é possível notares que tipo de vida se segue. (VI,68-79)

A natureza dos deuses para nós, enfim se revela: é dar-nos notícia de uma forma divina, de uma imagem de vida perfeita, que devemos, dentro, é claro, de nossas limitações, buscar também, pelo afastamento do medo de morrer, pelo caráter moderado e tranquilo, e pela correta seleção e fruição dos verdadeiros prazeres.

Há nisso tudo, porém, um, digamos, paradoxo teológico: se os deuses emitem simulacros, eles têm um corpo; mas se têm um corpo, têm um arranjo de átomos e espaço vazio (pois só existem duas naturezas, átomos e vazio); mas, embora essas duas naturezas sejam infinitas e eternas, seus arranjos não são; logo, se algo emite simulacros, ele está sujeito a desgaste e morte, o que seria incompatível com deuses.

Além disso, era de se esperar que o materialista Lucrécio pura e simplesmente negasse a existência dos deuses, o que ele jamais faz na obra. E por que nem ele, nem seu mestre Epicuro, o fazem? Acreditamos que eles, no fundo, preservam a ideia de existência dos deuses, embora de forma paradoxal, buscando associar a vida perfeita possível a nós (claro, aquela que segue as preconizações epicuristas) a uma vida condigna à dos deuses, e (o que é mais importante) sem que estes, modelos indiferentes de perfeição, se interessem em nos julgar ou censurar. Dessa maneira, fica preservada também a liberdade de buscarmos nossa felicidade nesse mundo, sem outra moral que a restrinja além daquela que devemos impor a nós mesmos para o nosso próprio bem.

Paradoxal, santificante, legitimadora e útil, existindo tão-somente como imagem de vida perfeita na mente: essa é, portanto, a natureza dos deuses para nós; e sendo a filosofia tão querida por Lucrécio uma filosofia do significado e utilidade das coisas “para nós”, essa natureza é, além disso, suficiente.

Acácio Luiz Santos.