Lucrécio
acreditava nos deuses? A julgar por seu magno poema, a resposta (surpreendente
para um materialista) é sim. No entanto, a ideia que ele fazia dos deuses era
bem diversa daquela em que os romanos acreditavam. Logo no início do Livro 1,
lemos:
A
natureza dos deuses inteira requer, por si mesma, 44
que
seja fruída de vida imortal em suprema concórdia, 45
longe
de nossos assuntos, de tais afastada e excluída;
e,
isenta de dor por completo, e também de perigos isenta,
dona
dos próprios recursos, de nós carecida em nada,
nem
é cativa de dádivas, nem é tomada de ira. (I,44-49)
Além
de afastados, indiferentes aos mortais e seus problemas, os deuses tão-pouco participam
na criação e funcionamento desse nosso mundo. Com efeito, em várias partes do
poema Lucrécio questiona qual seria a vantagem de os deuses abandonarem sua
tranquilidade perpétua e virem a se ocupar das coisas de um mundo tão fugaz e
frágil:
Caso
tais coisas tu tenhas bem assimilado, a natura 1090
ora
é vista liberta, dos donos soberbos deposta,
pois
efetua suas obras por si mesma, imune aos deuses.
Ou,
por acaso, aos peitos sagrados ― que calmos degustem
tranquilamente
um plácido evo e uma vida serena! ―
cabe
o cômputo imenso reger? a eles cabe com brando 1095
aperto
manter em seu jugo as rédeas do vasto infinito? (II,1090-1096)
Além
disso, sendo a natureza tão repleta de elementos hostis ao homem (doenças,
feras, catástrofes, fome, definhamento, ódio, guerras e morte), ela é, conforme
argumenta Lucrécio, uma obra indigna de seres perfeitos:
Mesmo
que eu todavia ignorasse os princípios das coisas, 195
eu,
não obstante, ousaria, pelas próprias regras celestes,
asseverar
e mostrar, através de outras muitas causas,
que
para nós, por decreto divino, não foi preparada
a
natureza das coisas, de tantos defeitos provida! (V,195-199)
Indiferentes
a nós, vivendo uma vida calma, sem aborrecimentos nem necessidades, completamente
estranhos a mundos perecíveis e cheios de tristezas e perigos como o nosso, os
deuses dispensam plenamente nossos, digamos, obséquios, que não têm serventia
alguma para seres que não se desgastam, nem adoecem, nem envelhecem, tão-pouco
morrem. Por isso, até mesmo imaginar que eles tivessem querido criar a natureza
do mundo e cuidar dos homens como, digamos, bichinhos de estimação:
(..)
é
desvario. E o que, aos imortais e beatos, o nosso 165
agradecimento
pod’ria trazer-lhes de tão proveitoso,
que
decidissem fazer algo apenas por nosso interesse?
e
que novidade pod’ria incitar-lhes, após tanto tempo,
quietos,
a avidamente alterar sua vida pregressa?
a
novidade, com efeito, agrada a quem insídias sofria 170
em
eras antigas; porém, a quem nunca algo amargo afligiu
anteriormente,
enquanto ia usufruindo um evo agradável,
como
pod’ria o amor pelo novo inflamá-lo a tal ponto? (V,165-173)
Mesmo
assim, não desistimos! Se um bezerro imolado não deu resultado, continuamos
abatendo outros, até ir-se embora em sangue o gado inteiro. Talvez os deuses
queiram algo mais precioso de nós… Nesse caso, não hesitamos em tomar o
parente de sangue mais próximo, e ele que aplaque deuses tão irados e
exigentes! É assim que Agamêmnone oferece a própria filha, Ifigênia (ou
Ifianassa, como Lucrécio a chama) em sacrifício a Diana para que sua armada
pudesse partir sem percalços, em um dos trechos mais comoventes da obra:
Nesse
momento, à mísera, não haveria proveito
se
ela, chamando-o de pai, tivesse primeiro honrado
o
rei; pois, erguida por homens, com trêmulas mãos às aras 95
era
levada ― e não ao solene costume dos sacros,
que
acompanhada de canto himeneu perfeito ela fosse,
pura,
em tempo de núpcias ―; impuramente, no entanto,
triste
oferta a imolar à grandeza do pai, era enviada
para
morrer pela leda e auspiciosa partida da armada. 100
Tanto
a religião persuadir assim pôde de males. (I,93-101)
O
último verso do trecho acima sintetiza uma convicção e uma causa de Lucrécio:
afirmar, por reflexão atenta, que ímpio não é demonstrar a não intervenção dos
deuses no mundo; ímpio é, em verdade, cometer as mais terríveis atrocidades sob
a justificativa de cultuar os deuses.
Na
segunda parte de nossa postagem, procuraremos justamente investigar a resposta
que nos oferece Lucrécio a essa questão: por que, ainda que inútil, o homem
oferece os sacrifícios mais terríveis e cruéis aos deuses? Até a próxima
postagem, e muito obrigado a todos por sua visita!
Acácio Luiz Santos.
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