Nas
partes anteriores de nossa postagem, vimos que os deuses, na obra de Lucrécio,
aparecem como seres sem necessidades nem aborrecimentos, vivendo uma existência
à parte de nosso mundo, completamente indiferentes a nós. Vimos ainda que,
mesmo assim, por causa do medo de morrer e da ambição de poder, os homens lhes
oferecem sacrifícios, não raro sangrentos. Concluindo nossa postagem, procuraremos
agora entender qual é, exatamente, o lugar dos deuses, e em que pode consistir,
afinal, a sua natureza para nós. Desde já, desejamos a todos que nos acompanharam até
aqui uma boa leitura, e muito obrigado por sua visita!
Inicialmente,
quanto ao lugar dos deuses, há uma interessante passagem no início do Livro 3, quando,
após Lucrécio louvar, uma vez mais, os esforços de seu mestre, Epicuro, para
demonstrar que os deuses não têm participação na criação nem no funcionamento
de nosso mundo, ele descreve em breves notações o lugar dos deuses:
Vai-se
o véu, divindade dos divos ― e as mansas moradas,
que
nem os ventos agitam, nem as nuvens com chuvas copiosas
regam,
nem a cândida neve cadente adensada de aguda 20
geada
macula, e que um éter sem nuvens continuamente
cobre
e compraz largamente de lume difuso munido ―;
tudo
a natura oferece a eles também, e nem de longe
algo
lhes turva do ânimo a paz, nunca, em hora alguma:
pelo
contrário, jamais lhes advêm os Aquerúsios templos. 25 (III,18-25)
Os
deuses vivem imperturbáveis, em moradas tranquilas, sem percalços, conforme
Lucrécio anunciara desde o Livro 1. A novidade agora é que a natureza oferece
tudo a eles, aparentemente sem lhes tirar nada em troca. Como seria isto
possível? E como poderia a razão reflexiva depreendê-lo, uma vez que ela
depende dos dados oferecidos pelos sentidos? Embora os deuses tenham uma natureza
diversa da nossa, está claro que algo relacionado a eles nos afeta, fazendo com
que a razão tenha condições de refletir sobre o seu modo particular de
existência. Vejamos, portanto, a seguir como os deuses se afirmam como presença
no mundo dos mortais.
A
presença dos deuses na cultura romana é fato patente, e Lucrécio reconhece três
significados deles para nós. Inicialmente, eles têm um significado simbólico,
pelo qual os mitos relacionados aos deuses santificam os valores adotados e
prezados pela sociedade. O Livro 2 contém uma longa passagem que descreve um
cortejo em celebração da Mãe Terra, de curiosa modernidade, pois Lucrécio
interpreta todos os seus elementos em função do significado que eles trazem
para nós. A descrição do cortejo conclui explicando a presença das legiões
armadas nele:
Por
causa disso acompanham armadas facções a grã mãe, 640
que
significam os preceitos da diva: que com armas de guerra
e
com virtude desejem guardar sua pátria terra
e
se preparem a servir de abrigo e decoro aos pais.
Bem
que essas coisas se ofereçam habilmente expostas,
’stão
todavia bem longe expulsas da vera razão. 645 (II,640-645)
As
armas no cortejo, portanto, sacralizam a ideia de defender a pátria terra, prescrita
pela deusa. Logo adiante, Lucrécio expõe o significado metonímico dos deuses,
pois com frequência empregamos os seus nomes para designar as coisas a que os
seus mitos estão ligados:
Ora,
se alguém institui chamar ao mar por Netuno 655
e
às messes por Ceres, e usar o de Baco bel nome prefere
a
proferir o apropriadamente mais justo de vinho,
então
concedamos que ele nomeie o orbe das terras
Mãe
dos deuses, dês que ele em verdade, no entanto,
evite
manchar o seu ânimo da religião indigna. 680 (II,655-659;680)
Dos
dois trechos acima, vemos que Lucrécio, apesar das concessões, não deixa de
enfatizar que o culto aos deuses (lembremos, indiferentes a nós) é desprovido
de razão reflexiva, e que inaceitável, por sua vez, é recair nas máculas da “religião
indigna” (ou seja, os sacrifícios e atos ímpios cometidos em nome da religião).
Mas os deuses trazem um terceiro significado ainda, de caráter alegórico,
representando abstrações vitais para o homem, e este caráter é inclusive
empregado por Lucrécio logo no início do poema, em seu famoso louvor a Vênus, e
também aparece no início do Livro 6, quando ele pede inspiração à Musa:
E
enquanto ao cândido código do derradeiro desígnio
corro,
revela-me o rumo correto, ó cálida musa,
tu,
ó Calíope, quietude dos homens, volúpia dos deuses,
que,
aconselhado, eu conquiste a coroa com loa ilustre. 95 (VI,92-95)
Nesses
três significados, particularmente o último, fica claro o caráter
paradigmático, exemplar, que os deuses têm para os homens, sugerindo uma
excelência de virtudes e correta e moderada eleição dos verdadeiros prazeres,
para que a vida possa ser plenamente usufruída. Mesmo assim, de que modo essa,
digamos, notícia dos deuses nos chega? De onde ela vem? E como os homens
conseguem captá-la? Numa passagem do Livro 5, Lucrécio nos dá elementos para
responder a essas perguntas:
Não
se pode, tão-pouco, crer que estejam as moradas
sacras
dos deuses situadas em parte qualquer desse mundo.
A
natureza dos deuses decerto é tênue e afastada
em
muito dos nossos sentidos, e a custo a mente a apreende;
e,
assim como escapa ao contato das mãos e ao toque humano, 150
não
tange coisa alguma que possa por nós ser tangida;
pois
o que não é tangível não pode tanger igualmente. (V,146-152)
Lucrécio
descarta taxativamente que o lugar dos deuses esteja em nosso mundo visível; descarta
também que exista qualquer contato entre eles e os homens (na verdade, ele sugere
mesmo que, nem que os deuses quisessem, isso não seria possível). Não obstante,
nossa mente capta, embora com esforço, sua natureza. E isso se faz da mesma
maneira com que a mente capta os simulacros (imagens tenuíssimas) das coisas
desse mundo:
Já
em vigília os mortais divagavam e viam passarem
imagens
egrégias dos deuses pelo ânimo absorto, e durante 1170
o
sono ainda mais se admiravam ao vê-los de corpos maiores;
atribuíam-lhes
sentidos, pois lhes parecia deveras
ver
a mover-se os seus membros; e as vozes vibravam soberbas,
em
consonância com o aspecto preclaro e a força imensa.
E
vida eterna atribuíam a eles, pois sempre suas faces 1175
se
renovavam; e sua forma, além disso, mantinha-se a mesma:
isso
porque não julgavam que seres dotados de força
tão
poderosa pudessem de outra qualquer ser vencidos.
E
os imputavam, ainda, excelsos de felicidade,
pois
o temor de morrer não os atormentava jamais. 1180
E
além disso os viam, em sonhos, façanhas notáveis
empreenderem
― e inúmeras! ―, sem se cansarem do esforço.
Tanto
no entanto, aos eventos celestes e anuais estações
sempre,
conforme uma ordem constante, notavam voltar, e
não
podiam entender por que causa ocorriam tais coisas: 1185
por
conseguinte, encontraram um refúgio, atribuindo aos deuses
todas
as coisas e, ainda, supondo-as submissas a eles.
E
colocaram os templos e sedes divinas no céu,
pois,
pelo céu, a noite e a lua eram vistas vagando,
(..)
(V,1169-1189)
Notemos
que as imagens dos deuses nos chegam, mas o ânimo dos homens tira sozinho suas
conclusões, fantasiando seres fortes, imortais, belos e infatigáveis, senhores
das coisas e habitantes do céu. Lucrécio, no entanto, várias vezes nos alertara
de que o ânimo é passível de tirar conclusões erradas sobre os dados sensoriais
que o afetam, e que principalmente em sonhos, o ânimo, exausto e em repouso,
junto com a alma, não é capaz de discernir entre realidade e imaginação.
Destarte, a natureza dos deuses para nós, nesse mundo, é a mesma dos simulacros:
imagens desprendidas das coisas, que pairam invisíveis aos olhos e acabam sendo
finalmente captadas pela mente. A aproximação dos deuses aos simulacros é mais
evidente ainda nessa passagem do Livro 6:
Se
não retiras do ânimo e enjeitas bem longe a ideia
de
atribuir aos deuses atos indignos e turvos,
seus
santos numes divinos, por ti desdenhados, amiúde 70
obstruir-te-ão
― não que a força suprema dos deuses consiga
ser
violada ou, vibrando de ira, infligir pena amarga ―;
mas
enquanto eles, em plácida paz, permanecem quietos,
iras
em imensas torrentes irás conceber revolverem
e
não chegarás com um plácido peito aos templos dos deuses, 75
nem
aos simulacros que são desprendidos de seu santo corpo
―
anúncios de forma divina, os quais nas mentes dos homens
se
insinuam ― irás recebê-los de ânimo calmo.
E
a isso é possível notares que tipo de vida se segue. (VI,68-79)
A
natureza dos deuses para nós, enfim se revela: é dar-nos notícia de uma forma
divina, de uma imagem de vida perfeita, que devemos, dentro, é claro, de nossas
limitações, buscar também, pelo afastamento do medo de morrer, pelo caráter
moderado e tranquilo, e pela correta seleção e fruição dos verdadeiros prazeres.
Há
nisso tudo, porém, um, digamos, paradoxo teológico: se os deuses emitem
simulacros, eles têm um corpo; mas se têm um corpo, têm um arranjo de átomos e
espaço vazio (pois só existem duas naturezas, átomos e vazio); mas, embora
essas duas naturezas sejam infinitas e eternas, seus arranjos não são; logo, se
algo emite simulacros, ele está sujeito a desgaste e morte, o que seria
incompatível com deuses.
Além
disso, era de se esperar que o materialista Lucrécio pura e simplesmente
negasse a existência dos deuses, o que ele jamais faz na obra. E por que nem
ele, nem seu mestre Epicuro, o fazem? Acreditamos que eles, no fundo, preservam
a ideia de existência dos deuses, embora de forma paradoxal, buscando associar
a vida perfeita possível a nós (claro, aquela que segue as preconizações
epicuristas) a uma vida condigna à dos deuses, e (o que é mais importante) sem
que estes, modelos indiferentes de perfeição, se interessem em nos julgar ou
censurar. Dessa maneira, fica preservada também a liberdade de buscarmos nossa
felicidade nesse mundo, sem outra moral que a restrinja além daquela que
devemos impor a nós mesmos para o nosso próprio bem.
Paradoxal,
santificante, legitimadora e útil, existindo tão-somente como imagem de vida
perfeita na mente: essa é, portanto, a natureza dos deuses para nós; e sendo a
filosofia tão querida por Lucrécio uma filosofia do significado e utilidade das
coisas “para nós”, essa natureza é, além disso, suficiente.
Acácio Luiz Santos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário