Boas-vindas!

Bem-vindos ao blog PROJETO POETAS LATINOS!


Criado por nossa firma, Cyclicus Editorial, o PROJETO tem como objetivo inicial publicar, em volumes uniformes, as obras completas que nos chegaram dos poetas do período de maior efervescência da literatura latina clássica, isto é, os séculos I a.C. e I d.C., de Lucrécio a Juvenal. Dentro desse objetivo, lançamos o blog homônimo para podermos divulgar o PROJETO e manter o leitor a par das novidades.


Se é lícito defender o ineditismo e a relevância de nosso empreendimento, observaremos apenas que jamais algo parecido foi tentado na história editorial brasileira. Já se fizeram anteriormente, como todos sabemos, várias traduções de certos autores ou de obras específicas, em prosa ou em versos, seguindo os mais diversos critérios. No entanto, jamais testemunhamos uma iniciativa que colocasse todos esses nomes clássicos de uma das matrizes vitais de nossa cultura, e todo o seu espólio restante, ao alcance do leitor brasileiro, reunindo-os em uma coleção uniforme, com texto bilíngue, e empregando critérios definidos de tradução capazes de manter a fluência, a dinâmica e a expressividade métrico-rítmica dos versos originais.


Desde já, agradecemos a todos pelo interesse e apoio.


Acácio Luiz Santos.

terça-feira, 12 de março de 2019

Manutenção


Aos amigos leitores e seguidores do PROJETO POETAS LATINOS, informamos que, durante os próximos dias, estaremos em processo de manutenção do blogue, o que não impedirá, no entanto, que ele siga normalmente ativo neste espaço, aberto às suas sempre muito bem vindas visitas e comentários. Concluído todo o processo, comprometemo-nos a compensar este breve período sem postagens e a responder prontamente todos os comentários e mensagens que tiverem sido enviados durante o mesmo. Desde já, agradecemos a compreensão.

Acácio Luiz Santos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Lucrécio e os deuses (3ª parte)


Nas partes anteriores de nossa postagem, vimos que os deuses, na obra de Lucrécio, aparecem como seres sem necessidades nem aborrecimentos, vivendo uma existência à parte de nosso mundo, completamente indiferentes a nós. Vimos ainda que, mesmo assim, por causa do medo de morrer e da ambição de poder, os homens lhes oferecem sacrifícios, não raro sangrentos. Concluindo nossa postagem, procuraremos agora entender qual é, exatamente, o lugar dos deuses, e em que pode consistir, afinal, a sua natureza para nós. Desde já, desejamos a todos que nos acompanharam até aqui uma boa leitura, e muito obrigado por sua visita!

Inicialmente, quanto ao lugar dos deuses, há uma interessante passagem no início do Livro 3, quando, após Lucrécio louvar, uma vez mais, os esforços de seu mestre, Epicuro, para demonstrar que os deuses não têm participação na criação nem no funcionamento de nosso mundo, ele descreve em breves notações o lugar dos deuses:

Vai-se o véu, divindade dos divos ― e as mansas moradas,
que nem os ventos agitam, nem as nuvens com chuvas copiosas
regam, nem a cândida neve cadente adensada de aguda 20
geada macula, e que um éter sem nuvens continuamente
cobre e compraz largamente de lume difuso munido ―;
tudo a natura oferece a eles também, e nem de longe
algo lhes turva do ânimo a paz, nunca, em hora alguma:
pelo contrário, jamais lhes advêm os Aquerúsios templos. 25 (III,18-25)

Os deuses vivem imperturbáveis, em moradas tranquilas, sem percalços, conforme Lucrécio anunciara desde o Livro 1. A novidade agora é que a natureza oferece tudo a eles, aparentemente sem lhes tirar nada em troca. Como seria isto possível? E como poderia a razão reflexiva depreendê-lo, uma vez que ela depende dos dados oferecidos pelos sentidos? Embora os deuses tenham uma natureza diversa da nossa, está claro que algo relacionado a eles nos afeta, fazendo com que a razão tenha condições de refletir sobre o seu modo particular de existência. Vejamos, portanto, a seguir como os deuses se afirmam como presença no mundo dos mortais.

A presença dos deuses na cultura romana é fato patente, e Lucrécio reconhece três significados deles para nós. Inicialmente, eles têm um significado simbólico, pelo qual os mitos relacionados aos deuses santificam os valores adotados e prezados pela sociedade. O Livro 2 contém uma longa passagem que descreve um cortejo em celebração da Mãe Terra, de curiosa modernidade, pois Lucrécio interpreta todos os seus elementos em função do significado que eles trazem para nós. A descrição do cortejo conclui explicando a presença das legiões armadas nele:

Por causa disso acompanham armadas facções a grã mãe, 640
que significam os preceitos da diva: que com armas de guerra
e com virtude desejem guardar sua pátria terra
e se preparem a servir de abrigo e decoro aos pais.
Bem que essas coisas se ofereçam habilmente expostas,
’stão todavia bem longe expulsas da vera razão. 645 (II,640-645)

As armas no cortejo, portanto, sacralizam a ideia de defender a pátria terra, prescrita pela deusa. Logo adiante, Lucrécio expõe o significado metonímico dos deuses, pois com frequência empregamos os seus nomes para designar as coisas a que os seus mitos estão ligados:

Ora, se alguém institui chamar ao mar por Netuno 655
e às messes por Ceres, e usar o de Baco bel nome prefere
a proferir o apropriadamente mais justo de vinho,
então concedamos que ele nomeie o orbe das terras
Mãe dos deuses, dês que ele em verdade, no entanto,
evite manchar o seu ânimo da religião indigna. 680 (II,655-659;680)

Dos dois trechos acima, vemos que Lucrécio, apesar das concessões, não deixa de enfatizar que o culto aos deuses (lembremos, indiferentes a nós) é desprovido de razão reflexiva, e que inaceitável, por sua vez, é recair nas máculas da “religião indigna” (ou seja, os sacrifícios e atos ímpios cometidos em nome da religião). Mas os deuses trazem um terceiro significado ainda, de caráter alegórico, representando abstrações vitais para o homem, e este caráter é inclusive empregado por Lucrécio logo no início do poema, em seu famoso louvor a Vênus, e também aparece no início do Livro 6, quando ele pede inspiração à Musa:

E enquanto ao cândido código do derradeiro desígnio
corro, revela-me o rumo correto, ó cálida musa,
tu, ó Calíope, quietude dos homens, volúpia dos deuses,
que, aconselhado, eu conquiste a coroa com loa ilustre. 95 (VI,92-95)

Nesses três significados, particularmente o último, fica claro o caráter paradigmático, exemplar, que os deuses têm para os homens, sugerindo uma excelência de virtudes e correta e moderada eleição dos verdadeiros prazeres, para que a vida possa ser plenamente usufruída. Mesmo assim, de que modo essa, digamos, notícia dos deuses nos chega? De onde ela vem? E como os homens conseguem captá-la? Numa passagem do Livro 5, Lucrécio nos dá elementos para responder a essas perguntas:

Não se pode, tão-pouco, crer que estejam as moradas
sacras dos deuses situadas em parte qualquer desse mundo.
A natureza dos deuses decerto é tênue e afastada
em muito dos nossos sentidos, e a custo a mente a apreende;
e, assim como escapa ao contato das mãos e ao toque humano, 150
não tange coisa alguma que possa por nós ser tangida;
pois o que não é tangível não pode tanger igualmente. (V,146-152)

Lucrécio descarta taxativamente que o lugar dos deuses esteja em nosso mundo visível; descarta também que exista qualquer contato entre eles e os homens (na verdade, ele sugere mesmo que, nem que os deuses quisessem, isso não seria possível). Não obstante, nossa mente capta, embora com esforço, sua natureza. E isso se faz da mesma maneira com que a mente capta os simulacros (imagens tenuíssimas) das coisas desse mundo:

Já em vigília os mortais divagavam e viam passarem
imagens egrégias dos deuses pelo ânimo absorto, e durante 1170
o sono ainda mais se admiravam ao vê-los de corpos maiores;
atribuíam-lhes sentidos, pois lhes parecia deveras
ver a mover-se os seus membros; e as vozes vibravam soberbas,
em consonância com o aspecto preclaro e a força imensa.
E vida eterna atribuíam a eles, pois sempre suas faces 1175
se renovavam; e sua forma, além disso, mantinha-se a mesma:
isso porque não julgavam que seres dotados de força
tão poderosa pudessem de outra qualquer ser vencidos.
E os imputavam, ainda, excelsos de felicidade,
pois o temor de morrer não os atormentava jamais. 1180
E além disso os viam, em sonhos, façanhas notáveis
empreenderem ― e inúmeras! ―, sem se cansarem do esforço.
Tanto no entanto, aos eventos celestes e anuais estações
sempre, conforme uma ordem constante, notavam voltar, e
não podiam entender por que causa ocorriam tais coisas: 1185
por conseguinte, encontraram um refúgio, atribuindo aos deuses
todas as coisas e, ainda, supondo-as submissas a eles.
E colocaram os templos e sedes divinas no céu,
pois, pelo céu, a noite e a lua eram vistas vagando,
(..) (V,1169-1189)

Notemos que as imagens dos deuses nos chegam, mas o ânimo dos homens tira sozinho suas conclusões, fantasiando seres fortes, imortais, belos e infatigáveis, senhores das coisas e habitantes do céu. Lucrécio, no entanto, várias vezes nos alertara de que o ânimo é passível de tirar conclusões erradas sobre os dados sensoriais que o afetam, e que principalmente em sonhos, o ânimo, exausto e em repouso, junto com a alma, não é capaz de discernir entre realidade e imaginação. Destarte, a natureza dos deuses para nós, nesse mundo, é a mesma dos simulacros: imagens desprendidas das coisas, que pairam invisíveis aos olhos e acabam sendo finalmente captadas pela mente. A aproximação dos deuses aos simulacros é mais evidente ainda nessa passagem do Livro 6:

Se não retiras do ânimo e enjeitas bem longe a ideia
de atribuir aos deuses atos indignos e turvos,
seus santos numes divinos, por ti desdenhados, amiúde 70
obstruir-te-ão ― não que a força suprema dos deuses consiga
ser violada ou, vibrando de ira, infligir pena amarga ―;
mas enquanto eles, em plácida paz, permanecem quietos,
iras em imensas torrentes irás conceber revolverem
e não chegarás com um plácido peito aos templos dos deuses, 75
nem aos simulacros que são desprendidos de seu santo corpo
― anúncios de forma divina, os quais nas mentes dos homens
se insinuam ― irás recebê-los de ânimo calmo.
E a isso é possível notares que tipo de vida se segue. (VI,68-79)

A natureza dos deuses para nós, enfim se revela: é dar-nos notícia de uma forma divina, de uma imagem de vida perfeita, que devemos, dentro, é claro, de nossas limitações, buscar também, pelo afastamento do medo de morrer, pelo caráter moderado e tranquilo, e pela correta seleção e fruição dos verdadeiros prazeres.

Há nisso tudo, porém, um, digamos, paradoxo teológico: se os deuses emitem simulacros, eles têm um corpo; mas se têm um corpo, têm um arranjo de átomos e espaço vazio (pois só existem duas naturezas, átomos e vazio); mas, embora essas duas naturezas sejam infinitas e eternas, seus arranjos não são; logo, se algo emite simulacros, ele está sujeito a desgaste e morte, o que seria incompatível com deuses.

Além disso, era de se esperar que o materialista Lucrécio pura e simplesmente negasse a existência dos deuses, o que ele jamais faz na obra. E por que nem ele, nem seu mestre Epicuro, o fazem? Acreditamos que eles, no fundo, preservam a ideia de existência dos deuses, embora de forma paradoxal, buscando associar a vida perfeita possível a nós (claro, aquela que segue as preconizações epicuristas) a uma vida condigna à dos deuses, e (o que é mais importante) sem que estes, modelos indiferentes de perfeição, se interessem em nos julgar ou censurar. Dessa maneira, fica preservada também a liberdade de buscarmos nossa felicidade nesse mundo, sem outra moral que a restrinja além daquela que devemos impor a nós mesmos para o nosso próprio bem.

Paradoxal, santificante, legitimadora e útil, existindo tão-somente como imagem de vida perfeita na mente: essa é, portanto, a natureza dos deuses para nós; e sendo a filosofia tão querida por Lucrécio uma filosofia do significado e utilidade das coisas “para nós”, essa natureza é, além disso, suficiente.

Acácio Luiz Santos.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Lucrécio e os deuses (2ª parte)


Na primeira parte de nossa postagem, vimos como Lucrécio concebe os deuses levando uma vida apartada da nossa, sem privações, desinteressados de todos os nossos assuntos, e não exercendo nenhum papel na criação nem no funcionamento do mundo. Mesmo assim, nada disso impede que os homens lhes ofereçam grandes tributos e sacrifícios.

É inevitável, diante desse quadro, fazer uma indagação: se os deuses nos ignoram por completo e jamais nos dão, digamos, a honra de sua visita, por que o homem, mesmo assim, cultua-os, não raro ofertando-lhes cruentos sacrifícios? A resposta, para Lucrécio, é bem simples e se resume a duas causas possíveis: medo de morrer e ambição de poder.

O medo de morrer não raro se relaciona ao temor de sofrer castigos eternos por males cometidos em vida, e este é um tópico frequente em várias religiões, que instigam o medo de agir mal, sob a argumentação de que, mesmo não sendo castigado em vida, o homem não escapará de ajustar suas contas após ter morrido. Assim faziam os vates (os sacerdotes) em Roma, que Lucrécio denuncia a seu amigo e discípulo Mêmio:

Quanto a ti, em momento iminente, dos vates vencido 102
pelos seus ditos terríveis, de nós desertar já desejas.
Mas certamente, que, em ti, insinuar muitos sonhos já ousam,
que, sem demora, da vida as regras mudar ora possam 105
e assim plenamente, aos teus arbítrios, turvar de temor! E
o fazem em proveito seu: pois, se existir de labores um termo
fixo os homens notassem, prevaleceriam de razão
à religião e, às ameaças dos vates, assim opor-se-iam.
Ora, nenhuma razão, faculdade nenhuma, resiste 110
quando ainda se temem tormentos eternos na morte. (I,102-111)

Lucrécio, portanto, considera o emprego da razão um excelente antídoto para o medo de morrer. Mas o homem frequentemente não usa, ou usa mal a razão: erra, corrompe-se, comete crimes, e à primeira ameaça de morte iminente, busca desesperado arrepender-se de suas faltas e honrar os deuses longamente ignorados:

Mesmo os que são exilados da pátria, partidos ao largo e
longe do alcance dos homens, de sórdido crime manchados,
que, afetados por todas as tribulações, sobrevivem, 50
mesmo em reveses, aonde aportam ofertam aos mortos:
reses mui negras abatem e aos manes divinos enviam
of’rendas sangrentas e cruéis. E, por coisas muito acerbas,
amargamente os ânimos voltam à religião. (III,48-54)

O medo de morrer se liga, portanto, à ambição de poder. Mais uma vez, o homem emprega mal sua razão: desdenhando refletir sobre quais são os verdadeiros bens a serem desejados nesta vida, o homem se dedica à ganância e ao acúmulo de riquezas, e acaba envolto em uma busca ingrata por rapinagens e corrupção, poder e honrarias, ao usufruto de coisas belas e caras, cujo preço cruel é uma vida de insegurança e suspeita:

E finalmente, a avareza e a cegueira por vãs honrarias,
que aos míseros homens coagem a transpor os limites 60
do que é justo e, entre cúmplices, sócios de crimes e súcias,
noites e dias lutar sem cessar com esforço excessivo
para alcançar os supremos poderes: tais tribulações,
em não mínima parte, se nutrem do medo da morte. (I,59-64)

Por isso, queixa-se Lucrécio, os homens resistem tanto à ideia de que os deuses não se importam com eles: à consciência culpada é necessário que existam divindades que, devidamente mimoseadas com oferendas e sacrifícios, possam perdoar os erros e ajudar a expiar os crimes. Mesmo não tendo cometido atrocidades, os homens, por sua vez, espantam-se com as catástrofes naturais e tempestades e, ao invés de examiná-las com cuidadosa reflexão, temem que elas sejam ocasionadas por deuses irritados e, uma vez mais, buscam acalmá-los com tributos e derramamento de sangue:

Pois os que bem aprenderam que os deuses um leve evo levam,
mesmo assim se admiram da regra por que cada coisa
pode gerar-se, especialmente aquelas que, sobre 60
as suas cabeças, discernem advir pelas plagas celestes;
por conseguinte, ao uso antigo de religião retornam,
e implacáveis senhores adotam, aos quais atribuem
― míseros! ― tudo poder, ignorantes daquilo que pode
e do que não pode existir, e da regra por que a potestade 65
de cada coisa é enfim definida e um limite a ela imposto:
são da mais cega razão, portanto, levados errantes. (VI,58-67)

O emprego correto da razão, conforme Lucrécio, acarreta portanto um triplo benefício: liberta os homens do medo de morrer e das ambições de poder, fazendo-os voltar-se para a busca dos verdadeiros bens de modo equilibrado; estimula-os a buscar as verdadeiras causas naturais para todos os fenômenos do mundo; e finalmente, afasta os homens da prática de sacrifícios sangrentos e rituais inúteis, sempre criticados abertamente pelo poeta:

Nem é sequer piedade ser visto volver-se velado
a lápide alguma, tão-pouco a todo altar estear-se,
nem se prostrar estendido no solo e bater tolas palmas 1200
ante os templos dos deuses, nem espargir os altares
de muito sangue quadrúpede, nem interligar voto a voto,
mas contemplar tudo com uma mente de todo tranquila. (V,1198-1203)

Mas afinal, qual é o lugar dos deuses? Sempre confiante no correto emprego da razão e reflexão para espantar as trevas do ânimo, Lucrécio prometeu ainda, no Livro 5, uma longa exposição sobre os deuses e suas sedes:

Devem assim suas sedes das nossas dissímiles serem
mui certamente, e tênues conforme seu próprio corpo,
o que mais adiante eu demonstrarei com discurso copioso. 155 (V,153-155)

Infelizmente, todavia, ele não pôde cumprir a promessa; se ele, diante da trabalhosa tarefa de especulação sobre os corpos celestes, acabou por esquecê-la, ou se, contando realizá-la no Livro 6, o último, faleceu antes que pudesse escrevê-la, jamais saberemos. De qualquer forma, Lucrécio deixou numerosas indicações esparsas nos vários livros de seu poema, que vão permitir-nos tratar, na terceira e última parte de nossa postagem, da natureza dos deuses. Portanto, até a próxima e, mais uma vez, muito obrigado a todos por sua visita!

Acácio Luiz Santos.


terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Lucrécio e os deuses (1ª parte)


Lucrécio acreditava nos deuses? A julgar por seu magno poema, a resposta (surpreendente para um materialista) é sim. No entanto, a ideia que ele fazia dos deuses era bem diversa daquela em que os romanos acreditavam. Logo no início do Livro 1, lemos:

A natureza dos deuses inteira requer, por si mesma, 44
que seja fruída de vida imortal em suprema concórdia, 45
longe de nossos assuntos, de tais afastada e excluída;
e, isenta de dor por completo, e também de perigos isenta,
dona dos próprios recursos, de nós carecida em nada,
nem é cativa de dádivas, nem é tomada de ira. (I,44-49)

Além de afastados, indiferentes aos mortais e seus problemas, os deuses tão-pouco participam na criação e funcionamento desse nosso mundo. Com efeito, em várias partes do poema Lucrécio questiona qual seria a vantagem de os deuses abandonarem sua tranquilidade perpétua e virem a se ocupar das coisas de um mundo tão fugaz e frágil:

Caso tais coisas tu tenhas bem assimilado, a natura 1090
ora é vista liberta, dos donos soberbos deposta,
pois efetua suas obras por si mesma, imune aos deuses.
Ou, por acaso, aos peitos sagrados ― que calmos degustem
tranquilamente um plácido evo e uma vida serena! ―
cabe o cômputo imenso reger? a eles cabe com brando 1095
aperto manter em seu jugo as rédeas do vasto infinito? (II,1090-1096)

Além disso, sendo a natureza tão repleta de elementos hostis ao homem (doenças, feras, catástrofes, fome, definhamento, ódio, guerras e morte), ela é, conforme argumenta Lucrécio, uma obra indigna de seres perfeitos:

Mesmo que eu todavia ignorasse os princípios das coisas, 195
eu, não obstante, ousaria, pelas próprias regras celestes,
asseverar e mostrar, através de outras muitas causas,
que para nós, por decreto divino, não foi preparada
a natureza das coisas, de tantos defeitos provida! (V,195-199)

Indiferentes a nós, vivendo uma vida calma, sem aborrecimentos nem necessidades, completamente estranhos a mundos perecíveis e cheios de tristezas e perigos como o nosso, os deuses dispensam plenamente nossos, digamos, obséquios, que não têm serventia alguma para seres que não se desgastam, nem adoecem, nem envelhecem, tão-pouco morrem. Por isso, até mesmo imaginar que eles tivessem querido criar a natureza do mundo e cuidar dos homens como, digamos, bichinhos de estimação:

(..)
é desvario. E o que, aos imortais e beatos, o nosso 165
agradecimento pod’ria trazer-lhes de tão proveitoso,
que decidissem fazer algo apenas por nosso interesse?
e que novidade pod’ria incitar-lhes, após tanto tempo,
quietos, a avidamente alterar sua vida pregressa?
a novidade, com efeito, agrada a quem insídias sofria 170
em eras antigas; porém, a quem nunca algo amargo afligiu
anteriormente, enquanto ia usufruindo um evo agradável,
como pod’ria o amor pelo novo inflamá-lo a tal ponto? (V,165-173)

Mesmo assim, não desistimos! Se um bezerro imolado não deu resultado, continuamos abatendo outros, até ir-se embora em sangue o gado inteiro. Talvez os deuses queiram algo mais precioso de nós… Nesse caso, não hesitamos em tomar o parente de sangue mais próximo, e ele que aplaque deuses tão irados e exigentes! É assim que Agamêmnone oferece a própria filha, Ifigênia (ou Ifianassa, como Lucrécio a chama) em sacrifício a Diana para que sua armada pudesse partir sem percalços, em um dos trechos mais comoventes da obra:

Nesse momento, à mísera, não haveria proveito
se ela, chamando-o de pai, tivesse primeiro honrado
o rei; pois, erguida por homens, com trêmulas mãos às aras 95
era levada ― e não ao solene costume dos sacros,
que acompanhada de canto himeneu perfeito ela fosse,
pura, em tempo de núpcias ―; impuramente, no entanto,
triste oferta a imolar à grandeza do pai, era enviada
para morrer pela leda e auspiciosa partida da armada. 100
Tanto a religião persuadir assim pôde de males. (I,93-101)

O último verso do trecho acima sintetiza uma convicção e uma causa de Lucrécio: afirmar, por reflexão atenta, que ímpio não é demonstrar a não intervenção dos deuses no mundo; ímpio é, em verdade, cometer as mais terríveis atrocidades sob a justificativa de cultuar os deuses.

Na segunda parte de nossa postagem, procuraremos justamente investigar a resposta que nos oferece Lucrécio a essa questão: por que, ainda que inútil, o homem oferece os sacrifícios mais terríveis e cruéis aos deuses? Até a próxima postagem, e muito obrigado a todos por sua visita!

Acácio Luiz Santos.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Lucrécio: pequena antologia (2)



Nesta segunda antologia de Lucrécio, apresentamos nossa tradução de passagens em que ele descreve cenas da natureza, sob vários matizes. No primeiro trecho (I,271-297), para demonstrar que os ventos, embora invisíveis, são tão possuidores de matéria quanto os rios, ele descreve a ambos em sua faceta destruidora. Em seguida, repostamos um trecho (II,24-39), acrescentando-lhe um verso, em que Lucrécio valoriza as coisas simples da vida, enfatizando que se pode ser feliz sem grandes luxos ou exuberâncias, e que riquezas, poderes e honrarias jamais, por si sós, afastam de nós todos os males. Em (II,342-370), para provar que nenhum exemplar, de nenhuma espécie, é absolutamente igual aos demais (senão seriam incapazes de se reconhecer uns aos outros), Lucrécio descreve o triste caso da ovelha que teve seu filhote sacrificado aos deuses, percorre angustiada os arredores em busca dele e, mesmo tendo retornado para os de sua espécie, não se conforta, pois nenhum deles é seu filho amado. No trecho seguinte (V,195-234), para demonstrar que o nosso mundo não foi criado pelos deuses, Lucrécio nos dá uma de suas mais pessimistas descrições da natureza, enfatizando-a como um ambiente hostil a nós e, além disso, destinado à destruição, ou seja: o mundo é uma obra cheia de defeitos, indigno, portanto, de ter sido criado por seres perfeitos. Em V,1392-1411, Lucrécio se abre à modulação nostálgica, dos tempos de uma vida mais calma, na tranquilidade do campo, e da alegria encontrada nos prazeres mais simples; note-se como Lucrécio adapta habilmente, logo no início, cinco versos do segundo trecho, uma técnica habitual que ele emprega na composição do poema. Finalmente, Lucrécio capta o horror e assombro dos homens diante das grandes catástofres: do céu, do mar e da terra (V,1218-1240); temerosos e ignorantes das causas dos fenômenos, fantasiam deuses terríveis que os engendram, e cedem, a partir daí, ao obscurantismo supersticioso.

Acácio Luiz Santos.

I,271-297. Dos corpos primeiros ocultos (trecho)

Inicialmente, a força impetuosa do vento golpeia
e afunda imensos navios, e nuvens espessas dissipa,
e corre através das campinas com rápido e bruto tornado,
e árvores crassas espalha por sobre as altas montanhas:
toda a floresta devasta a rajadas; assim se enraivece 275
e, em frêmito ameaçador, novamente insurge as vagas.
Logo, sem dúvida existem invisíveis corpos de vento,
que, aos mares, e às terras, e às nuvens espessas do céu,
varrem e subitamente arrastam com o bruto tornado,
e a outras, sem ordem arrostam e outros massacres propagam. 280
E a natureza tranquila da água de súbito muda:
com abundante corrente, que os pingos espessos da chuva
fazem aumentar, das mais altas montanhas um jorro violento
deixa em fragmentos as árvores todas da inerme floresta.
Nem mesmo as sólidas pontes conseguem das águas a força 285
súbita aguentar. E então, turvo da imensa borrasca,
o rio, enfim, com avassaladora violência, transborda
e, com terrível estrondo revolto, promove um massacre:
rochas destrói e arrasta o que se opuser a seu fluxo.
Tenham-se em conta também as rajadas do vento ― arrojadas 290
como um rio possante ―, que, quando projetam a sua força
a toda parte, trespassam as coisas à frente e as destroem
com repetidos ataques, e às vezes num vórtice torto
as firmam e, rápidas, levam-nas em revolvente tornado.
Logo, ora e agora, existem de vento invisíveis corpos, 295
visto que, em fatos e modos, análogos se apresentam
aos grandes rios, que se caracterizam por corpo visível.



II,24-39. Da verdadeira felicidade (trecho)

Se áureas imagens de impúberes não existem nas casas,
lâmpadas a segurar, ignescentes, nas mãos direitas, 25
por que forneçam as luzes nos ricos banquetes noturnos;
e não reluz de ouro a casa, nem brilha de prata tão-pouco;
e à cítara eco não fazem os áureos painéis laqueados ―
nesta ocasião, os moradores prostrados na grama macia,
junto às águas de um rio, à fronde das árvores altas, 30
não com abundantes recursos restauram alegres os corpos,
quando o tempo sorri e especialmente do ano
as estações aos gramados de flores viçosas matizam.
E as febres ardentes mais rápido não se despedem do corpo,
quer sobre estampas tecidas e manto escarlate-purpúreo 35
jazas, quer sobre um vulgar cobertor, em estertores, te estendas.
Ao nosso corpo, portanto, os mais caros tesouros em nada
o beneficiam, tão-pouco a nobreza ou a glória da corte
(como já visto, isso, ao ânimo, estima-se inútil também);
(..)



II,342-370. Da diversidade nas espécies

Quanto e enquanto, o gênero humano, e os ’scamosos nadantes
mudos, e os animais ferozes, e o gaio rebanho,
e os vários pássaros, que a usufruir os lugares de águas
vivem, ao redor de lagoas, e fontes, e bancos de areia, 345
e aqueles que, sobrevoando-os, percorrem os bosques selvagens ―
toma um qualquer deles e o confronta com os de sua espécie:
notá-los-ás divergir de figuras entre eles decerto.
Não por um outro motivo seria possível que a prole
reconhecesse a mãe, e esta àquela ― que sempre o fazem ―, 350
nem mesmo, então, os homens familiares se conheceriam.
Amiúde, em frente aos suntuosos santuários dos deuses descai,
junto aos altares turíbulos, sacrificado, um vitelo,
um jato de cálido sangue expirando profuso do peito.
Mas ― ai! ― a mãe despojada, vagando por verdes relvados, 355
nota no solo as marcas fendidas de pés nele impressas,
esquadrinhando aflita os lugares, que algures consiga
a prole perdida rever, e, estancando, de queixas preenche
o bosque frondífero e, outra e outra vez, o covil revisita,
irredutível no seu desejo de, ao filho, revê-lo; 360
mas nem os tenros salgueiros, nem as ervas de orvalho regadas,
nem mesmo os córregos a respingar pelas margens conseguem
o ânimo seu confortar e afastar a sua súbita angústia,
nem outras aparições de vitelos do ledo rebanho
podem distrair o seu ânimo e dos tormentos livrá-la, 365
que, por seu turno, algo tão estimado e próprio procura.
De mas a mais, aos tenros noviços de trêmulas vozes
suas cornígeras mães distinguem, e os cordeiros lactantes,
pelos balidos, às mães; e, conforme a natura o dispõe,
cada um às suas, as tetas maternas de leite procuram. 370



V,195-234. Da natureza eivada de defeitos

Mesmo que eu todavia ignorasse os princípios das coisas, 195
eu, não obstante, ousaria, pelas próprias regras celestes,
asseverar e mostrar, através de outras muitas causas,
que para nós, por decreto divino, não foi preparada
a natureza das coisas, de tantos defeitos provida!
Primeiramente, de tudo o que o céu impetuoso alcança, 200
ũa ávida parte os montes e selvas de feras severas
tomam; e outra, penedos e pântanos vastos ocupam;
e o mar, que tão longe separa as orlas das terras, outra ainda;
e uns dois terços de tudo isso, o férvido ardor calcinante
e a assídua geada cadente os subtraem aos mortais. 205
Quanto ao que resta ao cultivo, a natura seu rastro escond’ria
sob as campinas, se a força humana não lhe resistisse
e, por viver, não se houvesse, com a enxada bidente, habituado
sempre a gemer e, com o arado, riscar toda a terra a fundo.
Se, revolvendo com o relho as glebas fecundas e ao solo 210
sempre domando, não estimulássemos safras das terras,
nada espontaneamente viria aos límpidos ares.
Quando, assim mesmo, o que fôra obtido com imenso trabalho
todo frondeia e floresce afinal pelas terras cuidadas ―
ou o abrasa o etéreo sol com excessivos calores, 215
ou o arruínam as súbitas chuvas e as frias geadas,
ou o devastam os flagelos dos ventos com fúria violenta.
Ais a mais, a ― das feras ― horrífera raça, à espécie
humana hostis: por que a natureza por terras e mares
as alimenta e acrescenta? e por que as estações trazem sempre 220
doenças? por que a prematura extinção tudo invade vagueante?
Ais a mais, a criança, qual nauta atirado por sevas
ondas, jaz nua no solo, sem fala, carente de todo
auxílio vital, tão logo às lúcidas orlas a lança,
desde o ventre materno afora, a natura com esforço, 225
e enche de lúgubre pranto o local, como é razoável
para quem deve ainda passar tantos males na vida.
Crescem, porém, animais vários ― gados e hordas de feras ―
sem o emprego de guizos, nem que se dirija a elas,
de amas afáveis, a branda e balbuciante palavra; 230
nem pedem vestes variadas conforme a estação do ano;
e, afinal, não precisam de armas, nem de altas muralhas
para guardar seus pertences, que tudo a todos o solo
e a própria natura nutriz oferecem em grande fartura.



V,1392-1411. Dos prazeres antigos (trecho)

Frequentemente então, prostrados na grama macia
junto às águas de um rio, à fronde das árvores altas,
não com abundantes recursos praziam alegres os corpos,
quando o tempo sorria e especialmente do ano 1395
as estações aos gramados de flores viçosas pintavam.
Nesse momento, aos folguedos, conversas e doces gracejos
soíam entregar-se: outrora era a musa agreste egrégia.
E um liberto deleite os movia a ornar a cabeça
e os ombros com belas guirlandas de folhas e flores repletas, 1400
e avançar com discordes passadas, movendo os membros
com atenção e tensão enquanto o pé intenso batia a mãe terra ―
isso ocasionava os risos e doces gracejos,
pois coisas novas e maravilhosas gozavam de estima.
E os vigilantes consolo ao sono of’reciam, levando 1405
vozes multimodulantes e cantos em tons alternados
e percorrendo os canudos da flauta com lábio recurvo.
E hoje ainda mantêm tais preceitos os vigilantes,
e aprenderam a observar as espécies de ritmo; no entanto,
o fruto não colhem mais doce do que aquel’ outro que outrora 1410
a estirpe silvestre dos filhos da terra colher costumava.



V,1218-1240. Do temor religioso (trecho)

E que ânimo não se contrai de temor, de ais e mais, aos deuses,
ou que membros não se arrepiam, de pânico presos,
quando estremece o solo assolado por golpe de raio 1220
horripilante e estrondos tremendos percorrem o céu?
povos e gentes não tremem? e o regente orgulhoso não nota
os membros se arrepiarem tomados de medo aos deuses,
de que, por ato afrontoso ou dito soberbo, chegado
tenha o tempo infesto enfim do encargo das penas? 1225
quando a força suprema do vento violento marinho
varre as ondas levando com a esquadra o seu comandante,
junto com as legiões valorosas e os elefantes,
ele então não implora aos deuses por paz em sua prece,
apavorado, que o vento se aplaque e a brisa bafeje? 1230
(Tudo em vão, todavia; que amiúde da intensa voragem
aos turbilhões do extermínio ele é enfim arrastado em seguida.)
― A tal ponto ũa força oculta as coisas humanas extingue,
e aos feixes galantes, e aos feros machados; e as pisoteia
sem hesitação, e se apraz, além disso, em ludibriá-las. ― 1235
Quando, afinal, sob os pés todo o solo vacila e balança
e tombam cidades fendidas ou pairam em suspeita ameaça,
o que há de espantoso em que as estirpes mortais se humilhem
e forças potentes e imensos portentos então atribuam
à conta de deuses que todo o conjunto das coisas governem? 1240